terça-feira, 22 de setembro de 2009

A IMPORTÂNCIA DO ACOLHIMENTO NA VISITA EDUCATIVA[1]

Procuro lembrar no presente texto a importância do acolhimento na visita educativa realizada em espaços culturais e instituições museológicas, considerando a variação do público em conteúdo, em linguagem e em tempo de apreensão. Por tal motivo, seguem apenas indicações gerais e sucintas, cujas questões a serem trabalhadas junto ao público dependem exclusivamente da sensibilidade e do saber ouvir e ler o visitante por parte do educador.

Para ilustrar
A exposição inaugurou há poucos dias. Um grupo chega à exposição e o educador muito entusiasmado, cheio de idéias e ávido em pôr a prova seu conhecimento se apresenta para iniciar a visita educativa com os visitantes. Nesse momento, introduz o assunto da mostra, fornece as regras de comportamento para a conservação das obras expostas com todos os nãos tais como: não tocar nas obras, não entrar com alimentos ou líquidos, não correr, não se afastarem do grupo, não fotografar, etc.
A mente humana aprende muito cedo os nãos; antes mesmo de engatinharmos, escutamos de nossas famílias os: não toque, não corra, não engula... Tudo isso por zelo. Zelo esse que há em museus ou espaços culturais e que, no entanto, volta-se muitas vezes, primeiramente para os objetos.

Um aparte - julgamento
Os nãos podem ser acatados ou não pelo visitante. E, esclarecer o porquê das restrições facilita a tentativa do público seguir as regras de espaços expositivos. Isso é educar.
É oportuno lembrarmos que assim como as crianças, muitos adultos “vêem” com as mãos. Isso porque o tato também fala, os materiais remetem a experiências que estão guardadas, que conhecemos pelo toque, nos atraindo pelo reconhecimento, pela semelhança ou, pelo desconhecido. Assim, acontece do público não ter ab initio o intuito de tocar algo exposto, mas seu modo de se relacionar com as coisas o conduzir instintivamente a tal ação. De que adianta a indignação com algum descuido do visitante quando ele não pretendia fazê-lo? Ao julgarmos um visitante é importante atentarmos para o fato de que também podermos ser julgados, motivo pela qual cabe esclarecer o porquê sermos denominados educadores. Colocamo-nos em posição igualitária, apenas apresentando pontos de vista que talvez o visitante não tenha experimentado até então. A denominação educador aqui empregada não confere com a idéia de alguém detentor do saber que passa conhecimento para alguém que não o detém. Trata-se de uma nomenclatura que abarca e faz uso de vivências anteriores do público, que pretende fazer o público vislumbrar por si mesmo várias possibilidades de relação com o mundo e com a produção humana, incluindo, portanto, revisitar experiências.

Na exposição
Após os nãos, o educador adentra a exposição com o grupo, fornece alguns dados sobre algum objeto selecionado por ele e dá início a uma série de questões. Parte do grupo não responde e parte o observa com a indignação estampada nas faces ou talvez com cara de “não sei”.
O educador pensa: O que aconteceu?
Na maioria nas vezes, o acolhimento é a resposta. É etapa fundamental dentro da visita educativa, quando se pretende trabalhar a partir do repertório do visitante. Ao receber o grupo, perguntas aparentemente simples podem trazer informações que indiquem a porta de acesso ao mundo do visitante. Como buscar mediar o visitante com seu repertório e a mostra sem esclarecer onde ele está, para quê, quais as possibilidades de experiências no espaço em diálogo com as peças e qual é o papel do educador?

Público e educador
Indico sinteticamente abaixo algumas etapas a serem consideradas pelos educadores voltadas para o público leigo.
Desconstrução de ideias estereotipadas do que é museu ou espaço cultural – características – porque e para que serve;
Esclarecimento do papel do educador de espaços expositivos ;
Levantamento da expectativa do visitante e do ritmo (timing) que deve ser empregado com o visitante ou grupo;
Trabalho do educador em relação a sua expectativa a partir do retorno do grupo;
Identificação da porta de acesso ao visitante – amarrar a medição a partir das referências dos visitantes, levando em consideração a afetividade e a memória do mesmo para facilitar sua apreensão;
Desenvolvimento da visita – informação (o que o visitante desconhece) e mediação (conexões entre experiências do visitante e a experiência aqui e agora junto ao objeto exposto);
Encerramento da visita com o educador, mas não das questões trabalhadas na visita.

Valores à parte – o “eu acho”
O “eu acho” vale e muito quando extraímos do visitante a sua justificativa. Estamos mediando e também exercitando nosso fazer o visitante entrar em ação, fazer fazer. Esse fazer é o de colocá-lo em ação com seu querer saber, seu questionar, ativar sua percepção para outras formas de se relacionar e ver as coisas. Trata-se sim de uma manipulação, mas de modo positivo. Para ampliar seu olhar sobre as coisas, as pessoas, os tempos e, principalmente, sobre si mesmo em relação a eles. Mesmo o “eu gosto” e “eu não gosto” acompanhados de justificativas podem ser usados na mediação. São indicativos das crenças e valores do grupo, de suas referências e, portanto, de até onde o educador pode ir para, então aprofundar as questões junto ao público.

Luciana Chen

[1] Esclareço que os apontamentos do texto são fruto de experiências pessoais e de conversas com educadores com os quais trabalhei ao longo de 11 anos em exposições.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

MEDIAÇÃO: PARA LEITURAS DO MUNDO
Luciana Chen

O sensível

Era uma vez um príncipe chinês do V século a.C. que ansiava por pinturas em seu palácio. Uma multidão de pintores de todo o reino se apresentou para que o príncipe elegesse quem executaria a tarefa. Eram tão numerosos que a sala de audiência não comportou senão a metade deles. Depois das saudações, eles se colocaram diante do príncipe com seus pincéis e preparam suas tintas. Quando todos os pintores já se encontravam acomodados, chegou um pintor vagarosamente e, com toda a calma, saudou o príncipe. Em seguida, em lugar de permanecer em sua presença, retirou-se. O príncipe enviou um de seus homens para verificar o que se passava. Ao retornar, o criado reporta: “Ele se despiu e está sentado na natureza seminu sem nada fazer.”
“- Excelente!” Exclamou o príncipe. “Esse será o encarregado: é um verdadeiro pintor!”.
[1]

O primeiro requisito para o pintor chinês tradicional é o de saber apreender a natureza pelos sentidos, integrando-se a ela. As relações que travamos com os objetos do mundo, sejam eles produções do homem ou objetos da natureza se dão, no primeiro momento, por meio dos nossos sentidos. Para realizar a leitura de alguma coisa, fazemos uso de no mínimo um deles: visão, tato, paladar, audição e olfato. Isso quer dizer que a primeira apreensão se dá por meio do nosso corpo, pelos nossos sentidos, que podem estar mais ou menos desenvolvidos e também ser acurados. Além da experiência que ocorre no presente, eles possibilitam resgatar experiências vividas, conectando-nos com o passado, entre lugares e tempos diversos.

Leituras

A leitura aprofundada de narrativas verbais e visuais ou plásticas prescinde do conhecimento de códigos? Para responder tal questão é necessário lembrar que a apreensão do mundo requer tanto uma leitura cognitiva quanto uma leitura sensível. Quando lemos um texto escrito fazemos uso do domínio do alfabeto, dos significados das palavras e minimamente, da sintaxe, uma vez que a organização das palavras pode facilitar ou o contrário, dificultar o nosso entendimento. Trata-se do conhecimento construído a partir da aquisição de códigos linguísticos. No campo artístico, não é preciso o domínio de códigos para nos sensibilizarmos com uma pintura, uma escultura, um filme, uma música, uma peça teatral, uma dança... Um desenho pode nos “tocar”, mas entendermos o porquê dele nos tocar requer uma análise mais aprofundada, um olhar com zoom para transpormos a superfície das coisas. Informações tais como: códigos formais, contextos de produção, posição do objeto na história, o conhecimento do fazer e da formação de quem o produz, etc podem nos ajudar nessa transposição em parceria com nossos sentidos. Nem um nem outro, o conhecimento cognitivo e o sensível se sobrepõe, mas dialogam para a realização de leituras aprofundadas.

Mediação

Discute-se muito sobre o que é mediação. Intermediar, conduzir, facilitar... Nem sempre o mediador funciona como um facilitador, mas como alguém que torna o caminho de conhecimento mais longo e por vezes até árduo, pois mostra formas de apreensão que demandam maior trabalho, mas que também permitem maior profundidade e, conseqüentemente, outros modos de ver e se relacionar com o mundo. Isso implica, portanto, em mudanças pessoais.
O sentido de mediação aqui empregado nutre-se dos pensamentos dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, em que a multiplicidade e o devir são uma coisa só. Sendo que “uma multiplicidade não se define por seus elementos, nem por um centro de unificação ou de compreensão. Ela se define pelo número de suas dimensões (...)”[2]. No contexto educacional, isso concerne ao deslocamento do educador e do educando, devindo um o outro, ou seja, cada qual atravessar a dimensão do outro e dele apreender também outros modos de se relacionar com as coisas. Desse modo, o próprio devir caracterizando-se como elo entre ambos. Eis o desafio.
A mediação no sentido acima é uma forma de educar que extrapola conteúdos, para criar experiências que compreendem reflexões e saberes que se transmutam, instiga os educandos a vislumbrar a multiplicidade dos modos de leitura das coisas do mundo, de maneira que o educador e educando façam parte da tecitura de suas experiências reciprocamente.
Mediar em exposições, junto a objetos artísticos ou semióforos (objetos que perderam seu uso e que são resignificados) objetiva estimular conjuntamente, tanto a cognição quanto os sentidos. Tanto na educação formal quanto na não-formal, cabe destacar a importância dos sentidos do educando como participante na construção do saber, pois suas experiências influem na afetividade com o qual ele se relaciona com algum objeto e, portanto, em sua maior ou menor disponibilidade para determinadas apreensões.
Ao mediar, o educador seleciona
[3] palavras e imagens, lembrando que as palavras também produzem imagens mentais[4] que remetem a experiências vividas. Mediar implica em saber lidar com as nossas próprias experiências. Saber contar nossas histórias e delas extrair reflexões acerca do mundo e de nós mesmos. E, quando da dificuldade de expor nossas histórias, podemos contá-las por meio de narrativas plásticas ou textuais de outros. Assim, a memória de conhecimentos adquiridos pela razão é ativada junto com a memória do sensível para resgatar experiências e empreender caminhos diversos do usual. As atividades práticas são um dos caminhos possíveis.

Referências Bibliográficas:
BELTING, Hans. Pour une anthropologie des images. Trad. Jean Torrent. Paris: Éditions Gallimard, 2004.

CHEN, Luciana. O desenho estampado das interações: gravador e curador/mostra e público. Dissertação de mestrado. Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia, vol. 1 (trad. Suely Rolnik). São Paulo: Ed. 34, 1997.
_____________________________. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia, vol. 4 (trad. Suely Rolnik). São Paulo: Ed. 34, 1997.
DISCINI, Norma. A comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005.
FIORIN, J.L.. As astúcias da enunciação. São Paulo, Ática, 1996.
__________. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2002.
FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l’œil et de l’esprit. Paris-Amsterdam: Éditions Hadès-benjamins, 1985.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GREIMAS, Algirdas Julien. Da Imperfeição. (trad. Ana Claudia de Oliveira). São Paulo: Hacker Editores, 2002.
LANDOWSKI, E.. Passions sans non. Essais de sociossemiotique III. Paris: Presses Universitaires de France, 2004.
LANDOWSKI, E.; OLIVEIRA, A.C. de (eds.). Do inteligível ao sensível. Em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo, Educ, 1995.
MARTINS, Miriam Celeste (Coord.). Curadoria educativa: inventando conversas. Reflexão e Ação – Revista do Departamento de Educação/UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul, vol. 14, n. 1, jan/jun 2006, p. 9-27.
OLIVEIRA, Ana Claudia de (Org.). Semiótica Plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004.
Ostrower, Fayga. Universos da Arte. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem numa série de cartas. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2002.
SHITAO. Les Propos sur la peinture du moine Citrouille-amère. Trad. Pierre Ryckmans. Paris: Hermann, 1984.

[1] In: SHITAO. « Les Propos sur la peinture du moine Citrouille-amère ».
[2] In: Gilles Deleuze, Félix Guattari, «Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia”, vol. 4, p. 33.
[3] Ver Miriam Celeste Martins(Coord.), “Curadoria educativa: inventando conversas. Reflexão e Ação”.
[4] Para saber mais sobre imagem mental ver : Hans Belting, “Pour une anthropologie des images”.